GDC: indústria de games vive “o melhor e o pior dos tempos”

“Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; foi a era da sabedoria, foi a era da tolice; a época da crença, a época da incredulidade; a estação da Luz, a estação das Trevas; a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós; íamos todos direto para o Céu, íamos todos para o lado oposto – em suma, era um período tão semelhante ao atual, que algumas de suas autoridades mais barulhentas insistiam que fosse recebido, para o bem ou para o mal, apenas no grau superlativo de comparação.”

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Suicide Squad: Kill the Justice League é o melhor resumo da indústria de games atual (Crédito: Divulgação/Rocksteady Studios/Warner Bros. Games)

Suicide Squad: Kill the Justice League é o melhor resumo da indústria de games atual (Crédito: Divulgação/Rocksteady Studios/Warner Bros. Games)

O primeiro parágrafo de Um Conto de Duas Cidades, de Charles Dickens, descreve bem o estado atual da indústria de games, recentemente ilustrado pelo relatório anual da Games Developer Conference (GDC), a conferência que será realizada em março de 2025. O setor nunca lucrou tanto, e continuará lucrando nos próximos anos, mas em contraste, nunca tantos profissionais foram demitidos na história, seja por expectativas irreais, mau planejamento da cadeia superior, a adoção da IA em massa, para reduzir cargos redundantes, ou mesmo sem nenhum motivo aparente.

Relatório da GDC aponta aumento nas demissões

A versão 2025 do relatório State of the Game Industry da GDC reuniu opiniões de 3 mil desenvolvedores e profissionais da indústria de games em 86 países, a maioria (58%) dos Estados Unidos como de costume, mas pela primeira o Brasil teve uma participação significativa, respondendo por 1,6% dos ouvidos para a pesquisa.

O destaque do relatório é, sem muita surpresa, a onda de demissões que assola o setor desde o fim da pandemia da Covid, inicialmente como uma resposta aos quadros inflados durante o período, na esperança de que pessoas isoladas em casa jogariam mais e comprariam mais games, o que não aconteceu graças à recessão global.

A desculpa inicial foi sendo incrementada, já que a Covid não teria como levar a culpa sozinha por muito tempo, e fatores como o alto custo dos projetos, cada vez mais caros, má gestão, e objetivos irreais impostos por executivos aos desenvolvedores, foram outros motivos para manter as demissões em fluxo por todo o ano de 2023, que viu 9.300 profissionais (números oficiais; o real pode ser bem maior) indo para a rua em 2023.

Em 2024, o número de gente mandada embora aumentou 57%, atingindo 14.600 trabalhadores em diversos setores da indústria de games, de novo, números oficiais. Só no mês de janeiro a Microsoft, sozinha, somou 34% do montante, com 5.000 demitidos da divisão Xbox, e dos estúdios Activision e Bethesda.

A pesquisa da GDC aponta que 1 a cada 10 profissionais foram demitidos em 2024, no que demissões agora são vistas como uma constante do setor, com ocorrências semanais e diárias (sério, é difícil abrir o feed de manhã e não ler ao menos uma notícia sobre demissões, e/ou estúdios ssendo fechados), e continuarão, se não em um ritmo estável, aumentando.

Os departamentos mais afetados são os de Narrativa (19%), Produção e Gerenciamento (16%), Artes Visuais (16), Programação e Engenharia de Software (12%), Game Design (9%), e Finanças (6%).

As justificativas das companhias e estúdios para demitirem profissionais são as mesmas de sempre, com a famosa “reestruturação” de negócios a campeã, com 22%; em seguida vem a redução de receita, com 19%, e mudanças para acompanhar as tendências do mercado, com 15%. Ao mesmo tempo, 19% dos desenvolvedores demitidos dizem que “nenhum motivo foi dado”, estes simplesmente levaram um pé na bunda, e foi isso.

Desenvolvedores também apontam outros motivos, como má gestão e expectativas irreais, com uma citação dizendo o seguinte:

“Nesta indústria, nós estabelecemos objetivos impossíveis, então demitimos todo mundo quando fica óbvio que é realmente impossível”.

Um a cada 10 desenvolvedores de games foram demitidos em 2024, e muitos não conseguem um novo emprego na área (Crédito: studio4rt/Freepik)

Um a cada 10 desenvolvedores de games foram demitidos em 2024, e muitos não conseguem um novo emprego na área (Crédito: studio4rt/Freepik)

Esta frase resume o que aconteceu com a Rocksteady Studios, a aclamada desenvolvedora dos games principais da série Batman: Arkham, e especializada em jogos single-player, incumbida por ordens superiores (dizem, do próprio CEO da Warner Bros. Discovery, David Zaslav), de fazer do Jogo Como um Serviço (GaaS) Suicide Squad: Kill the Justice League, um sucesso. Todos os envolvidos sabiam, mesmo alguns executivos, sabiam que esta era uma má ideia, a Rocksteady tinha zero experiência com o gênero, mas como sempre, “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

O resultado não poderia ser outro, o game do Esquadrão Suicida foi um fiasco completo, dando um prejuízo de US$ 200 milhões à Warner, o que teria deixado Zaslav, que só se importa com dinheiro, furioso, ao ponto dele ter cogitado fechar a Rocksteady, ou demitir 50% do pessoal. No fim, o estúdio sofreu duas ondas de demissões, e terá no próximo Batman: Arkham sua “última chance” sob a gestão atual do conglomerado, na visão de profissionais da indústria.

O crescente número de demissões segue na contramão dos lucros do setor, que gerou US$ 183,9 bilhões em 2023, e tem uma estimativa de US$ 187,7 bilhões para 2024, segundo dados da Newzoo. O relatório da GDC diz que 41% dos profissionais entrevistados foram impactados pelas demissões em 2024, direta ou indiretamente, e 58% estão preocupados, em vários graus, com futuros cortes e fechamentos de estúdios. Muitos não conseguem realocação, ou estão há vários meses procurando emprego, ou tiveram que sair totalmente da indústria, para se manterem.

A continuidade nas demissões, à parte de projetos não atingirem expectativas, ou de processos caros demais, pode ser também atribuído aos simples desejo das companhias desejarem maximizar seus ganhos, onde funcionários passam a ser vistos apenas como despesas.

O que é entendido como um fator para a crescente adoção de soluções baseadas em Inteligência Artificial (IA).

Adoção de IA está crescendo

O uso de IAs generativas em diversos níveis do desenvolvimento de games já era significativo em 2023, e continuou crescendo em 2024. Na pesquisa atual, 52% dos entrevistados dizem que suas empresas adotam IA em alguma capacidade, e 36% usam tais ferramentas em seu trabalho diário. O setor de Finanças é o líder, com 51%, seguido de Produção, com 41%, e Marketing e Relações Públicas, com 39%. Apenas 9% dos estúdios exigem uso de IA.

Mesmo assim, a maioria dos profissionais não está contente. O número de profissionais que acreditam que a IA terá um impacto positivo na indústria de games caiu em relação à pesquisa anterior, de 21% (2023) para 13% (2024), enquanto os que acham que ela será negativa disparou, de 18% para 30%.

Mais da metade dos entrevistados (51%), de um total de 1.500 entrevistados especificamente sobre IA, estão particularmente preocupados com as questões éticas, que envolvem o uso de propriedades intelectuais protegidas pelas leis de direitos autorais, além da qualidade do produto final, do consumo de energia, e de preconceitos herdados durante o treinamento de dados.

Adoção de IAs generativas por estúdios está crescendo, e rápido (Crédito: Stable Diffusion)

Adoção de IAs generativas por estúdios está crescendo, e rápido (Crédito: Stable Diffusion)

O estudo não diz diretamente, mas há também a preocupação, em diversos setores, de companhias recorrerem à IA para cortar custos com funcionários, mas, em geral, profissionais mais velhos são muito mais propensos a adotarem as ferramentas generativas do que os mais jovens, muito provavelmente por entenderem como o mundo funciona: quem não se atualiza, fica para trás no mercado de trabalho.

A grande verdade é que a bolha do crescimento durante a pandemia estourou, e a corrente arrebentou, como sempre, do lado mais fraco, o dos profissionais de games. A resistência em adotar a IA como uma ferramenta de desenvolvimento, para auxiliar em suas atribuições será mortal para muitos desenvolvedores, no que esses, sim, serão substituídos por um algoritmo. Departamentos deverão encolher, passando a contar com menos devs, responsáveis pela parte criativa, com soluções generativas preenchendo as lacunas.

Fonte: Game Developer

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