“Canta, canta, minha gente”, álbum de Martinho da Vila, está prestes a completar 50 anos

“Canta, canta, minha gente”, sexto disco de Martinho José Ferreira, o Martinho da Vila, está prestes a completar 50 anos.

Lançado oficialmente na noite de 16 de setembro de 1974, no Teatro da Lagoa, zona sul do Rio, em evento promovido pela RCA Victor, o álbum nasceu cultuado.

Contrariando as previsões da própria gravadora – que havia bancado o álbum com desconfiança –, o LP foi aclamado pela crítica e estourou em vendas.

Escutado hoje, meio século depois de sua criação, “Canta, canta, minha gente” ainda soa novo.

A lucidez conceitual de Martinho e o entendimento do disco não como um apanhado aleatório de músicas, mas como uma obra bem alinhavada – traço marcante na extensa discografia do compositor e cantor que fez “Tendinha” (1978), “Terreiro, sala e salão” (1979), “Samba enredo” (1980), “Festa da raça” (1988), “O canto das lavadeiras” (1989), “Lusofonia” (2000) e, mais recentemente, “Negra ópera” (2023) e “Violões e cavaquinhos” (2024) – mantêm ainda hoje o cinquentenário “Canta, canta, minha gente” num patamar reservado aos grandes discos da música brasileira.

Pela quantidade de sucessos cantados e regravados até hoje, parece coletânea. Mas, não. É disco de carreira. A começar pela faixa de abertura, que dá nome ao disco, “Canta, canta, minha gente” é partido-alto cantado na favela e em festa de réveillon de gente rica cafona.

Foi composto por Martinho como uma mensagem de força e de esperança por dias melhores a brasileiros e brasileiras que ainda sofriam no bolso os impactos do “milagre econômico” imposto pelo regime militar.

A mansidão malandreada do canto de Martinho ajudava a abrandar o tom crítico da espera por ares mais leves e com menos cerceamento das liberdades individuais do que aqueles de 1974. Cenário atual ainda hoje num país com um Congresso ultraconservador, para dizer o mínimo.

A atemporalidade do sucesso do partido “Canta, canta, minha gente” é a mesma do ainda moderno samba “Visgo de jaca”, parceria de Sergio Cabral com o produtor e mestre da gaita Rildo Hora, e, também, a mesma de “Disritmia”, assinada apenas por Martinho.

À época da gravação, em 1974, os censores implicaram com uma única palavra: “porre”. Para o regime ditatorial vigente, o verso “vem logo, vem curar seu nego que chegou de porre lá da boemia” atentava contra “o bom comportamento”.

Hoje, em perspectiva, se debatem mais amplamente questões de gênero e se questiona por que não “vem logo, vem curar sua nega que chegou de porre lá da boemia”?

Foto: Divulgação.

De grande sucesso também é o samba “Renascer das cinzas”, que versa alegoricamente sobre a retomada de ânimo de uma escola rebaixada para o segundo grupo no carnaval. Samba de remontada, de superação, de volta por cima, já fez e ainda faz parte da vida de muita gente. “Vamos renascer das cinzas/ Plantar de novo o arvoredo/ Bom calor nas mãos unidas/ Na cabeça um grande enredo (…) Sambar na avenida/ De azul e branco/ é o nosso papel/ Mostrando pro povo/ Que o berço do samba/ É em Vila Isabel”.

Presidente de honra da Unidos de Vila Isabel, Martinho já havia feito seu nome no samba desde a década de 1950 em outra agremiação, a Aprendizes da Boca do Mato. De 1967, quando a Vila Isabel desfilou o samba-enredo “Carnaval das ilusões”, até 1973 Martinho ganhou cinco de sete disputas de samba. Em 1974, compôs “Tribo dos Carajás” a partir do enredo “Aruanã Açu”.

Os censores, que também fiscalizavam o que as escolas levariam para a avenida, encrencaram com a composição de Martinho. Descartado pela Vila Isabel, o samba-enredo em defesa dos indígenas foi gravado magistralmente no LP “Canta, canta, minha gente”.

Em 2024, com a discussão do marco regulatório da demarcação de terras evidentemente pertencentes aos povos originários ainda em pauta, o samba de Martinho da Vila permanece atual.

Com igual relevância permanecem “Nego, vem cantar” – que teve versos censurados por Martinho falar sobre a situação dos negros no Brasil e “além mar”, em África –, “Patrão, prenda seu gado”, chula raiada lançada em 1932, em reverência de Martinho aos que vieram antes, aos mais velhos, à “Santíssima Trindade da música popular brasileira”, os autores Pixinguinha, Donga e João da Baiana, e a faixa que encerra o disco, “Festa de umbanda”, com pontos de terreiro recolhidos e adaptados por Martinho.

No ano de 2024, com a ascensão neopentecostal, representada por ampla bancada no Congresso brasileiro, ainda são recorrentes denúncias de ameaças, violências e perseguições a terreiros das religiões de matriz africana.

Sempre ligado às suas origens negras, Martinho, que nasceu em Duas Barras e foi criado na favela Serra dos Pretos Forros, na Boca do Mato, gravou no LP de 1974 o rural “Calango vascaíno”, em que ele, o autor, dizia que a sua “única alegria é ver o Vasco jogar”.

Talvez o único verso do disco “Canta, canta, minha gente” que não seja mais tão atual para Martinho. Atolado em dívidas somadas a um ambiente de turbulências políticas, o Clube de Regatas Vasco da Gama convive há anos com uma realidade: lutar para escapar do rebaixamento para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro.

Compositor completo, Martinho, que abre o disco dizendo “canto o samba-enredo, um sambinha lento ou um partido-alto”, compõe e canta samba dolente “Viajando”, musicalmente vestido por um time que reunia os melhores instrumentistas do país.

Ao longo do disco gravado em 16 canais nos estúdios da RCA, em Copacabana, Rosinha de Valença e Manoel Conceição, o Mão de Vaca (nos violões), Mané do Cavaco, Zé Bodega (no sax tenor), Manoel Araújo (no trombone), Copinha (no flautim), Papão (na bateria), Zeca da Cuíca, Geraldo Bongô, Chacal, Jorginho do Império e companhia desfilam excelência arregimentados por Rildo Hora em pouco mais de 33 minutos de afirmação musical profundamente brasileira.

A consagração de “Canta, canta, minha gente” desde seu lançamento, ocupando as paradas de sucesso e ladeando em vendas campeões do momento como Roberto Carlos, derrubou os argumentos da direção da gravadora RCA Victor, que resistiu em dar ao disco o investimento defendido por Martinho.

Ressabiada com a venda mais baixa do álbum anterior, “Origens” (1973), a diretoria entendia que o disco de um sambista, como Martinho, não merecia naipe de cordas, como acabou tendo, completo, nem material gráfico caprichado, como também acabou tendo, com capa dupla, poster, encarte, ficha técnica, texto (escrito por Ziraldo), tudo isso com a assinatura inconfundível de Elifas Andreato.

A mentalidade preconceituosa da gravadora era a mesma da crítica, que em geral aclamou o disco em seu lançamento, mas sempre com uma espécie de espanto, como publicou o “Diário de Notícias”: “No LP ‘Canta, canta, minha gente’, Martinho atingiu um paroxismo considerado impossível pelos puristas: o máximo apuro e o maior requinte dentro de um trabalho que ainda é nitidamente ‘da Vila’”.

Não compreendiam – como ainda em 2024 muita gente finge não compreender – a possibilidade de haver tamanha erudição em criações das camadas mais populares.

A partir de “Canta, canta, minha gente” e pelas décadas seguintes, a gravadora não contestou mais a grandeza das invenções de Martinho da Vila.

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