Ancestral é mesmo o amor: a sofrência de Sérgio Pererê

A prolífica obra de Sérgio Pererê – que, só pra citar, em apenas em um ano de pandemia, chegou a colocar cinco discos no mundo – sempre esteve muito atrelada à religiosidade de matriz africana.

Uma rápida espiada em seu top 10 na maior plataforma de streaming confirma que não só fatia significativa de sua música pautou o tema, como também atesta que a maior parte de seus ouvintes buscou, até o momento, encontrar nele canções como “Oração ao perdão”, “Oiá”, “Iemanjá”, “Ponto de Oxum”, “Filho de Odé, “Hino da Umbanda”, entre outras criações nas quais o artista mineiro tem em temáticas ancestrais o cerne de sua produção.

“Canções de Outono” (Natura Musical), disco que Pererê acaba de colocar no mundo, no entanto, expande e aprofunda sua linguagem rumando por outros caminhos.

A caneta do mestre Dorival Caymmi já atestou, ainda nos anos 50, que “quem inventou o amor / não fui nem ninguém”. Nem Dorival, nem Pererê: “o amor acontece na vida”, como continua “Nem eu”, composição do baiano. Ou ao menos na Música Brasileira, como comentou Pererê em entrevista recente ao “Vozes da Vez”, podcast da jornalista Fabiane Pereira: “A música brasileira é regida pela sofrência”.

A invenção, digamos, no caso de “Canções de outono”, portanto, está longe de ser a temática amorosa, assunto que predomina nas rádios, nos streamings, nas redes. O que faz do novo disco do mineiro um registro singular é a abordagem sonora, ou, digamos, a roupa que veste esse amor.

Filho de uma benzedeira com um seresteiro, Pererê apresenta em seu décimo sexto disco algo que soa como o resultado deliciosamente inexato entre os dois. A influência da música africana, característica mais consistente de sua produção musical, chega a seu ponto mais evidente em “Canções de outono”.

Agora, porém, ela é cama para que suas canções possam experimentar outros caminhos. Não que o amor não tenha surgido antes na obra do mineiro. Em um de seus trabalhos mais recentes, “Canções de bolso”, de 2020, o tema já aparecia de forma menos tímida, mas é no novo disco que Pererê experimenta cantar tantas faces da experiência amorosa.

Enquanto canta ilusões e desilusões românticas acompanhado de, ao todo, 14 cantoras, Pererê vai costurando seu disco com traços fortes da sua música, um mérito a ser dividido com Richard Neves, produtor do disco.

Entre forrós ou tangos, entre sambas e canções que ecoam temas de novela, o que se escuta envolvendo os versos de amor são instrumentações de origem africana, pesquisa de longa data do cantor e compositor mineiro.

Pererê elenca desencontros com sua mbira. Despedidas são guiadas por flautas de bambu, e corações partidos ritmados por tambores. O desamor é conduzido por marimbas. Na canção de Pererê, o amor morre e renasce ancestral.

Ouça também:

Maurício Tizumba
As figuras de Pererê e Tizumba quase se misturam em Belo Horizonte. Amigos, parceiros e pares artísticos, os dois somam parcerias e chegam a ter composições confundidas pelo público. Juntos, lançaram um álbum ao vivo, resultado de show que fizeram lado a lado no Minas Tênis Clube, em 2018.

Ceumar

Uma das cantoras e compositoras mineiras de maior expressão no cenário nacional, Ceumar gravou ao lado de Pererê há mais de 15 anos. Em seu álbum ao vivo “Meu nome”, de 2009, a artista se uniu à Pererê em “Gira de meninos”, parceria dos dois. Antes, Ceumar também já havia gravado Pererê em 2003, no álbum “Sempre viva”.

Luiza Brina

Parceira recente de Pererê, a artista belo-horizontina compôs com ele “Oração 13 (Coração candongueiro)”, faixa que integra seu novo álbum, Prece. Com melodia de Brina e letra de Pererê, a composição foi feita inspirada na tecnologia da clarividência, assunto que interessa ao artista desde que via sua mãe, benzedeira, se dedicava à mediunidade.

Nath Rodrigues
Nome presente em “Canções de outono”, a mineira é das artistas mais celebradas de sua geração. Nath carrega no seu canto, na sua composição ou no seu violino traços contemporâneos da produção mineira, ,

Enversos

Grupo formado por Juliana Shiutz, Gustavo Vaz e Davi Knispel, o trio mistura neo-soul e r&b com canção mineira, numa renovação interessante que se conecta à obra de Pererê. Vale ouvir a romântica “Só restou nós dois”, lançada no último ano.

Laura Catarina

Difícil pensar em Pererê sem pensar em Vander Lee. Espécie de padrinho do artista, Vander influenciou profundamente a produção musical de Pererê. Laura Catarina, filha do cantor falecido em 2016, é um bom caminho para reviver a obra do artista popular mineiro.

Julianna Sá: O disco é composto por participações de mulheres de diferentes gerações, diferentes gêneros musicais, de diferentes regiões do país. Como as escolheu?

Sérgio Pererê: Quando eu pensei inicialmente no “Canções de outono”,  durante o outono de 2020, comecei a pensar nessas canções, nesse universo, de forma muito intuitiva. As coisas aconteceram de modo mágico. Ali durante a pandemia, várias cantoras se aproximaram de mim. A vida inteira eu sempre tive uma coisa muito forte com cantoras, muitas amigas cantoras, e na pandemia foram chegando pessoas novas. E em dado momento eu quis experimentar convidar uma cantora ou outra para fazer uma participação no álbum. Quando vi, eu já estava com a metade do álbum cheio de participações e eu fui mudando as canções, eu tinha feito várias, mas fui compondo outras pensando nas participações. Eram canções feitas especificamente para aquelas cantoras. Num primeiro momento eu devo dizer que foi uma escolha intuitiva, não foi algo muito planejado, mas aí no meio do caminho eu entendi que estava ali fazendo uma aquarela, uma coisa que valorizava cantoras muito diferentes umas das outras, uma da outra. E cada uma com um estilo. E isso foi até um desafio, porque foi ficando necessário eu pensar uma forma de conseguir respeitar o estilo de cada uma. Então, de modo geral, foi algo muito intuitivo e foi acontecendo naturalmente, de acordo com essa aproximação ou reaproximação.

Julianna Sá: Impressiona como, ao mesmo tempo, as canções parecem exatas pra algumas delas, como por exemplo é o caso da participação da Letrux, que soa como se fosse uma canção dela, e ainda assim, tem ali uma assinatura sua muito forte. O que você acha que é esse traço que identifica como uma obra tão sua?

Sérgio Pererê: Com tantas participações distintas e essa preocupação também de conseguir contemplar o estilo de cada uma, a identidade de cada uma, teve uma coisa que eu acho que talvez seja um mérito do Richard Neves, que foi o produtor musical. O Richard, o tempo todo, frisava a importância de ter alguma característica minha, alguma sonoridade que representasse o meu trabalho, algumas flautas de bambu que aparecem aí no decorrer do álbum inteiro, mbiras, que são instrumentos africanos, alguns timbres de tambores que já estão presentes também na minha sonoridade, então foi isso. E talvez também a forma de escrever.

Então essas coisas todas ajudaram a manter aí uma característica própria, uma vez que até mesmo o canto eu procurei moldar um pouco de acordo com cada uma. Então o Richard é quem merece o mérito por essa parte, por a gente ter conseguido manter uma identidade. A gente falou muito sobre isso durante todo o processo, né? Como manter minha identidade com essa variedade de estilos e ao mesmo tempo como a gente acharia uma unidade. Isso foi algo bem difícil, mas acho que ele ficou muito atento a isso. A nossa busca foi descobrir o que que tinha na minha obra que poderia ser algo em comum com cada uma dessas cantoras.

Julianna Sá: Nesse disco, há uma impressão de maior presença de instrumentos de origem africana. Embora, diferente de outros discos, a temática não seja conectada de forma direta, o disco soa como resultado perfeito da sua pesquisa instrumental. A que se deve essa sensação, ela se confirma na ficha técnica?

Sim, há uma instrumentação que já estava nos meus outros discos, mas bem marcada aqui. Para nós foi de fato muito importante manter esses instrumentos africanos, que já estão comigo desde sempre, até mesmo como uma forma de trazer uma mensagem de que quando a gente está trazendo essas sonoridades africanas, nem sempre trata-se de religiosidade.

Julianna Sá: Boa parte de seus álbuns são voltados a questões religiosas afro-mineiras, ou afro-brasileiras, num corte mais amplo. Suas canções mais ouvidas no Spotify, por exemplo, também atestam isso, elas trazem a temática religiosa como tema central. O que fez você dedicar um álbum inteiro ao amor?

É normal quando a gente ouve os tambores ou as mbiras, todas essas sonoridades africanas, as flautas do oeste africano, é normal que a gente imagine que esteja falando sobre religião, algo ligado à ancestralidade, e a gente achou interessante frisar esses sons. Para trazer mesmo essa mensagem de que os povos africanos ou afrodescendentes que estão em diáspora também estão falando de várias coisas, inclusive de amor.

Talvez esse seja o maior recado desse álbum, é poder trazer um pouco a atenção para o fato de que nós podemos falar de várias outras coisas. O fato de ser um artista preto, um compositor preto, com uma relação forte com essa ancestralidade é algo que não me priva desse lugar de sentir, desse lugar mais humano. Ou seja, nós não estamos a todo tempo ocupados em brigar contra o racismo, ou nós não estamos todo o tempo dentro dos terreiros de Candomblé, nós não estamos todo tempo no Congado, ou seja, nós estamos em todos os lugares e com todas as possibilidades do sentimento, todas as vulnerabilidades possíveis.

Isso é um assunto que esse álbum propõe, quando a gente traz essas sonoridades todas aí. A gente tem sonoridades que remetem ao oeste africano, que remete ao Zimbabwe, e Moçambique. Tem uma coisa legal, porque tem um tango, né? E quando a gente ouve um tango, logo se pensa na Argentina, mas as pessoas não sabem que o tango é também um ritmo de origem africana, que ficou muito presente na Argentina. Mas ele tem origem africana. O nome Tango já é um nome Banto, né?

E é isso. Essas são mensagens subliminares que vêm através dos instrumentos, através dos ritmos também.

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