“A tua presença” – o exílio de Maria Bethânia em solo brasileiro. – por Gustavo Henrique Coelho.

Em 1971 Caetano Veloso lançou um álbum que levava seu nome, porém ele estava irreconhecível. Olhos marejados, profundos, barba longa (algo que ele jamais repetiria) e vestindo um casaco de pele animal bem impróprio para a sua tropical Bahia. O cenário era Londres, na Inglaterra, o Narciso baiano vivia a sua pior fase, o exílio de terras brasileiras. Ele estava acompanhado de Gilberto Gil, que embora obviamente insatisfeito, tentou aproveitar as coisas que aquele ambiente novo proporcionava. “Caetano Veloso” , o LP, trazia 7 músicas, todas introspectivas e com um caráter lamentoso. A terceira delas, talvez seja a mais memorável, uma homenagem para a sua irmã: Maria Bethânia. No Brasil, a abelha rainha lançava dois trabalhos memoráveis: o ao vivo “Rosa dos Ventos” e “A tua presença morena“, este sendo o seu “exílio em solo brasileiro”.

O álbum, já abre com ares caetanistas com a composição “Janelas abertas N° 2”, com uma letra solitária, dotada de um vazio, mas não o vazio convencional, um vazio a lá Samuel Beckett, o vazio da desesperança na humanidade, dos temas perversos, da morte, das obscuridades que só a subjetividade humana pode proporcionar. Esse vazio entretanto é substituído na segunda faixa, pela religiosidade da canção recém lançada por Roberto Carlos, “Jesus Cristo“, em que Bethânia canta como uma verdadeira representante das faces divinas na terra acompanhada por um coral que transmite ainda mais a sensação espiritual, de encanto e distância das coisas terrenas. Na sequência em “O tempo passando“, vemos uma letra recheada pela percepção dos acontecimentos e como o tempo, que é rei, soberano ou senhor, pode afetar as relações e os afetos. A quarta faixa “Dia 04 de Dezembro” quebra a melancolia presente até então no disco e nos presenteia com uma canção de elementos religiosos, o culto a Iansã, num andamento rápido que nos dá um choque de fé e energia. Em “Quem me dera” quinta faixa, composição de Caetano, vemos o clima onipresente da saudade da Bahia e o sentimento de que não mais voltará. Na última faixa do lado A, “Mano Caetano” vemos novamente uma quebra nas canções tristes para dar lugar a uma composição de Jorge Ben, alegre como só ele sabe, o seu violão cheio de swing e Bethânia cantando a volta do irmão do curto porém impactante e injusto exílio.

Fechado o lado A, “A tua presença morena” abre o lado B da melhor maneira possível. A orquestra, que já tinha tudo momentos maravilhosos no disco até então, aqui se torna magistral, acompanhada da voz imponente de Bethânia, que pronuncia com determinação as palavras que exprimem a força da musa da canção. Em seguida, a oitava faixa “Mariana Mariana”, trás uma canção singela, sentida, onde a procura é o tema principal, isso se reflete na letra cheia de “cadê?”. “Folha morta” começa quase que jazzista e até pode nos lembrar dos grandes temas de Miles Davis no auge do cool jazz. Nessa canção a tristeza, palavra recorrente nesse álbum, retorna unida com a solidão e a falta de pertencimento na sociedade com o eu lírico da canção vivendo “à margem da vida”. Na décima faixa temos “Rosa dos Ventos” composição de Chico Buarque que inspirou o show de nome homônimo que Bethânia estreou nesse mesmo ano de 1971 e virou LP gravado ao vivo. Cheia de elementos da natureza, a canção prioriza a água, seu poder destruidor e amedrontador, também como reflexo do álbum “Construçãomagnum opus da carreira de Chico lançado nesse mesmo ano. Após o turbilhão de “Rosa dos ventos” vem o caos solitário de “Se eu morresse” novamente com o tema da solidão como destaque, a falta de amor e a dificuldade até mesmo de fazer falta. A última faixa é a prova viva da minha grande tese, “What’s new?” reflete a grande preocupação de Bethânia com o exílio do irmão. Não somente isso, quando Bethânia canta em inglês os versos que são traduzidos como “E aí, novidades? Como o mundo está te tratando” ela representa os familiares, amores, amigos e entes queridos de todos os exilados pela cruel e vil ditadura militar. Um apelo de incerteza e dúvida cortante, de ter que ver à distância o seu semelhante, seu irmão de sangue, Caetano, seu irmão de alma, Gilberto, tantos outros e outras que jamais saberemos os nomes e que a história apagou.

A voz de Bethânia lança luz sobre todo esse período nefasto da história brasileira, tocando na ferida da sociedade, como se questionasse a normalidade daqueles tempos com canções introspectivas, lentas, singelas, mas jamais frias. O lema cantado por Gal Costa aparece soando sutilmente em nossos ouvidos “é preciso estar atento e forte”. Nesse álbum, Bethânia diz agressivamente “eu prefiro abrir a janela, para que entrem TODOS os insetos”.

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