Na literatura, o futuro de “IAutores” é possível?

Há exatamente um ano, dados da pesquisa “Future of Fiction”, divulgada pela Wattpad e pela Wakefield Research, apontava que os leitores – sobretudo os mais jovens, Gen Z e Millennials – não estavam interessados em livros escritos por robôs baseados em Inteligência Artificial (IA).

Sim, com a rápida evolução da IA, o mercado literário não ficou inume a essa revolução tecnológica. A capacidade de algoritmos em compreender e gerar linguagem natural, e até criar autonomamente um texto, tem levantado questões sobre hábitos de leitura, autonomia criativa, identidade autoral, e desafiado mercados e a comunidade literária.

Interessados nesse momento de provocação e entusiasmo com IA, ouvimos autores e executivos de editoras para compreendermos como essa tecnologia se insere hoje no seu dia a dia, e qual o seu impacto na criação e produção literária.

Automação: princípio básico

Paulo Tadeu, Fundador e editor da Matrix Editora.

Para Paulo Tadeu, fundador e editor da Matrix Editora, a IA é vista como uma ferramenta eficiente de automação em diversas áreas. “Utilizamos para sugestão de títulos, complementação e sugestão de textos, criação de imagens e estamos na fase de implantação do sistema auxiliar de atendimento ao consumidor para as redes sociais e WhatsApp. Os resultados são muito satisfatórios. Ela agiliza diversos processos e possibilita maior produtividade aos funcionários”, conta o executivo.

Se há um ano, a pesquisa da Wattpad – plataforma online que incentiva seus usuários a criar e compartilhar suas próprias histórias impulsionado o movimento de webcomics webnovels na internet – salientava que as novas gerações estavam mais interessadas no senso de pertencimento e comunidade trazido por soluções como a IA, do que no contato com obras criadas pela tecnologia, a forma como Tadeu coloca o trabalho da Matrix com IA reforça que a automação, o princípio básico da IA, segue sendo ainda a sua melhor contribuição. “Sim, quando você avalia que um funcionário pode produzir mais com o uso da IA, isso significa uma possibilidade de lucratividade, num setor que sempre reclama das margens que tem”, pontua Paulo.

“Claro que sempre há, de antemão, um investimento na preparação de equipe, mas acredito que o setor como um todo está se beneficiando a curto e médio prazos. Nem falo de longo prazo, porque os resultados têm sido praticamente imediatos. E há diversas alternativas ainda a serem descobertas em cada empresa”, acrescenta.

Impulsionando novos formatos

Sobre como as novas tecnologias tem o potencial de reformular o hábito de leitura e impulsionar novos formatos, o mercado de streaming de audiobooks está em ascensão. Segundo um estudo da consultoria Grand View Research, o mercado global desse formato poderá atingir US$ 35 bilhões até 2030.

No Brasil, os audiobooks têm ganhado atenção das editoras, sobretudo com os novos recursos de IA. Paulo Tadeu, diz que a Matrix está de olho nesse modelo para ampliar público e mercado, tendo como benefício principal o encurtamento de prazos para a publicação. “Claro que ainda há problemas a serem resolvidos. Com IA, estamos falando de robôs e não de profissionais de locução/interpretação – acho que é o caso de avaliar cada obra a ser publicada nesse formato para decidir o que fazer. Mas a agilidade e o custo menor são bastante tentadores”, detalha.

Curadoria baseada em algoritmos

Em relação ao poder dos algoritmos, que podem detectar tendências e prever preferências de leitura, e se isso traz um risco de padronização ou até mesmo de perda de inovação e arrojo por parte das editoras, Paulo Tadeu entende que essa é uma preocupação relevante.

“Outro dia, usei a IA para fazer a avaliação de uma obra. Para mim, era algo sem muita perspectiva, mas resolvi fazer o teste no computador. O algoritmo avaliou como um livro com grande potencial. Preferi manter a minha decisão e não publicar. Claro que essa avaliação pode ser feita de diversas formas, dependendo dos questionamentos que você possa fazer à máquina. Mas prefiro usar três ferramentas muito pessoais que a IA não traz, pelo menos não ainda: minha experiência, minha lógica de trabalho e minha intuição”, conta o editor.

Sobre essa qualidade humana, a observação de Paulo vem ao encontro de mais um dado da pesquisa da Wattpad: a maioria dos leitores (80%) – de todas as idades – preferem recomendações humanas em vez de uma curadoria baseada em algoritmos (20%).

Equilíbrio e senso crítico

Alexandre Rodrigues, autor.

Para o escritor, Alexandre Rodrigues, doutor em Ciências da Comunicação e autor do livro “Domine seu negócio com IA”, a Inteligência Artificial se tornou uma ferramenta indispensável no seu dia a dia, sendo “um potencializador da criatividade”. Ele conta que ela está presente em todas as etapas do processo criativo e técnico, desde a organização das ideias até a produção final dos textos.

“A IA permite que eu explore diferentes perspectivas e referências rapidamente. Remove barreiras criativas, sugerindo caminhos que eu não consideraria de imediato. E expande o pensamento crítico, ao testar conceitos e argumentações com IA, consigo lapidar minhas ideias de forma mais estruturada”, explica. 

Entretanto, Alexandre diz que há um risco: “se utilizada de forma passiva e sem curadoria humana, a IA pode nivelar a criatividade para baixo, gerando apenas conteúdo derivativo. O diferencial do escritor ainda reside na sua originalidade, interpretação e visão única de mundo”, ressalta o escritor. Ele entende que, toda essa possibilidade de evolução com IA para mercado literário, requer equilíbrio e senso crítico, para que não haja uma dependência criativa que prejudique a autenticidade das obras.  

Vanessa Ferrari, editora e mestre em crítica textual pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), que utiliza algumas plataformas de IA para revisões e organização, diz que a IA serve para fazer os primeiros rascunhos, pôr as ideias no papel e agilizar a digitação, mas depois vem a lapidação, que é o ofício do escritor.

“Ainda que a gente peça para o programa reescrever de um jeito mais formal, informal, sóbrio, por exemplo, ele está programado para ser o clichê dessas formas. Por exemplo, ao pedir que a partir de uma cena, o programa escreva como um prosador poético, ele se apega no clichê da poesia e o resultado é constrangedor. Talvez, no futuro, isso mude, mas por ora não vejo a IA substituindo a cabeça do bom escritor”, avalia.

Testando os limites dos algoritmos

Para o autor e professor de literatura, Leonardo Villa-Forte, que entre livros e ensaios publicados produziu a série, “Conversas com Robôs/Robot Talks”, durante o isolamento da pandemia, a IA se revela como uma ferramenta para estímulos criativos.

Leonardo Villa-Forte, autor.

Ele conta que, nessa série iniciada com despretensão na pandemia em seu perfil no Instagram, o jogo se tratava fazer dele próprio um personagem, dispondo a dialogar abertamente com os algoritmos conversacionais escrevendo mensagens imprevisíveis para capturar resposta de assistentes virtuais de lojas, bancos, empresas e serviços.

“Acho interessante experimentarmos linguagens. O objetivo era testar limites e experimentar o quanto um humano é estimulado a se empobrecer para poder caber dentro dos padrões estreitos de comunicação de um algoritmo conversacional e o quanto o algoritmo detém de repertório – e quão longe vai seu manejo de seu banco de dados – para simular uma aparência mais ou menos satisfatória de humanidade”, explica Leonardo.

O dilema dos “IAutores”

Nessa jornada da IA no mundo literário, surge uma questão: caminhamos para um futuro de autores cocriando com IA, ou o surgimento de “IAutores”, modelos de Inteligência Artificial escrevendo suas próprias obras? 

Para Alexandre Rodrigues, é inevitável um futuro de cocriação entre autores humanos e IA. “Já estamos vendo ferramentas que auxiliam escritores na construção de mundos, personagens e enredos, além de modelos que conseguem gerar textos inteiros baseados em padrões literários existentes”. No entanto, ela salienta que há uma diferença fundamental entre ‘IAutores’ e autores humanos: “a IA pode simular criatividade, mas não pode sentir, experienciar ou criar com subjetividade genuína. A IA pode gerar textos, mas falta a ela intenção, subtexto e a percepção emocional do impacto das palavras”. 

Ainda que possamos ter modelos de IA escrevendo livros, Alexandre aposta que a aceitação pelo mercado dependerá da capacidade do leitor de se conectar emocionalmente com esses conteúdos (corroborando o ponto destacado no início sobre a pesquisa da Whatppad).

“A IA pode ser um excelente suporte para escritores humanos, mas dificilmente substituirá completamente o toque pessoal, a intuição e a profundidade emocional de um autor real. Dito isso, acredito que o futuro da escrita não será sobre a IA tomando o lugar dos escritores, mas sobre escritores que souberem integrar a IA para elevar sua própria capacidade criativa”, completa Alexandre.

“Aí está o paradoxo e o perigo”, diz Leonardo Villa-Forte. “A IA acelera o tempo, nos permitindo produzir mais, porém, como consequência de sua própria natureza, com menos diferenças entre uma coisa e outra”.  Sobre “IAutores”, Leonardo é categórico: “Não vejo futuro. Autoria é criação com intenção. O algoritmo pode gerar alguma coisa, mas, sendo um modelo de mecanismo, não desfruta de intenção, a qual decorre de vontade, visão e história pessoais”.

Evolução ou um risco para a criatividade?

Vanessa Ferrari, editora.

Ainda sobre o quanto a IA representa uma evolução ou risco para a nossa criatividade, em relação ao trabalho do escritor, Vanessa Ferrari acha que não. “O ofício do escritor é lidar com a escrita do ponto de vista estético. Se ele terceiriza o trabalho, ou seja, se ele quer ser escritor sem escrever, daí os méritos devem ir para o robô e não para o sujeito”.

Leonardo Villa-Forte diz que no curto prazo há um risco diante do fator econômico. “O barateamento levará pessoas em posição de decisão a escolher o uso do repertório padronizado da IA em ocasiões que, anteriormente, um humano seria solicitado a empregar sua força criativa. E a chance da IA realizar um trabalho mais rápido do que um humano é inversamente proporcional à chance da IA realizar um trabalho mais singular”.

Sobre esse contexto, Leonardo acrescenta que isso pode nos levar a uma sociedade onde a oferta cultural apresente pouca diversidade. “Isto porque dispormos de um mecanismo digital de interação de linguagem cheio de truques úteis não fará ninguém escrever mais criativamente que Mário de Andrade, Sófocles ou Manoel de Barros. Pode ajudar a escrever mais rápido. O que não significa ser criativo”.

Por outro lado, Leonardo entende que nessa evolução pode repetir o que aconteceu com o mecanismo do sample para música. “Ao surgir, o sample liberou novas e diferentes ações musicais que se expressam no tipo de recriação praticada por DJs. Haveria uma democratização de um certo tipo de produção, na qual determinadas pessoas acabam por se destacar e fazer coisas incríveis. Mas até o mais incrível DJ – ou o mais incrível escritor de prompt, artista de IA – precisará de tempo para viver experiências, criar repertório fora da tela, praticar sua sensibilidade, formar seu imaginário e assim ter chance de se tornar incrível. E no campo funcional da sociedade tecnológica, a promessa das IAs é justamente contrária a esta maturação. Sua proposta é acelerar o tempo, nos permitindo produzir mais”.

Contudo, Paulo Tadeu entende que estamos ainda numa “fase de descobertas”. “Há muita coisa nascendo. Ao mesmo tempo em que a IA pode significar uma pasteurização do conhecimento e da criatividade, ela pode trazer aberturas inimagináveis para o trabalho de inúmeros escritores, editores e profissionais do setor. Sou da turma dos otimistas. Espero que a IA ajude a formar uma geração de curiosos, obcecados pelo conhecimento, e claro, pela leitura”, conclui.

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