Fala de Lula sobre aparência de nova ministra foi machista, mas não pode ser comparada ao ódio misógino de gente como o deputado Gustavo Glayer e o ex-presidente Jair Bolsonaro.”Me veio a imagem da Gleisi, Lindbergh e Alcolumbre fazendo um trisal. Que pesadelo”. Essa frase foi dita por um deputado federal Gustavo Gayer, no X, antigo Twitter, na semana passada.
Ele se referia a uma ministra de Estado (Gleisi Hoffman) ao presidente do Senado (Davi Alcolumbre) e a um colega parlamentar (Lindbergh Farias), que vem a ser namorado de Gleisi Hoffmann. Mas ainda piora.
Minutos antes, ele fez um post direcionado a Lindbergh, onde dizia: “E aí, Lindbergh Farias, vai mesmo aceitar o seu chefe oferecer sua esposa para o Hugo Motta [presidente da Câmara] e Alcolumbre [presidente do Senado] como um cafetão oferecendo uma GP [garota de programa]. Sua esposa sendo humilhada pelo seu chefe e você vai ficar calado?”.
Sim. Isso foi dito por um deputado federal eleito, com um passado cheio de escândalos e que agora corre o risco de ser cassado (seria o mínimo), Nesse mesmo dia, a primeira-dama Janja teve que fechar seu perfil nas redes depois de sofrer uma onda de ataques misóginos e machistas.
Essa sequência de horror começou logo depois que o presidente Lula disse na última quarta-feira (12/03) uma frase infeliz e machista no lançamento do programa de Crédito do Trabalhador.
O trecho: “E é muito importante trazer aqui o presidente da Câmara e o presidente do Senado. Porque uma coisa, companheiros, que eu quero mudar, estabelecer uma relação com vocês. E por isso eu coloquei essa mulher bonita para ser ministra das Relações Institucionais. É que eu não quero mais ter distância entre vocês. Eu não quero que alguém ache que o presidente da República está distante do presidente da Câmara, está distante do presidente do Senado”.
Gleisi tinha tomado posse em um cargo importantíssimo do governo apenas dois dias antes e logo teve que se deparar com tudo isso.
Esses acontecimentos provam uma coisa que a gente já sabia: ser uma mulher na política e com poder no Brasil é um pesadelo. Mais uma prova disso: no mesmo dia da posse de Gleisi, a ex -ministra da Saúde Nísia Trindade disse, ao deixar o cargo, que havia sido alvo de uma “campanha sistemática e misógina”,
Muitos dizem que a frase de Lula teria sido uma resposta irônica ao ex-presidente Jair Bolsonaro, que uma semana antes havia afirmado que “petistas eram feias e incomíveis”.
Machismo x Misoginia
É surreal o nível baixo com que temos que lidar. E nesse ponto, preciso ser clara: acho que a frase de Lula (errada e machista) não pode ser comparada ao comportamento misógino de gente como Gayer e Bolsonaro.
É preciso que a gente diferencie o machismo e a misoginia. Não, as palavras não são sinônimas.
Machismo é toda aquela cadeia de pensamentos incrustada na maioria dos homens – e, em muitos casos, até em nós, mulheres, já que crescemos em uma cultura machista –, de que mulheres são objetos, de que estamos abaixo dos homens, de que nossa aparência é o mais importante e por aí vai.
Já misoginia é o ódio a mulheres. É aquele sentimento violento que se traduz em ataques, ameaças, e outras formas de violência. A frase de Gayer, como disse Manuela D’ávila em um excelente vídeo publicado em suas redes sociais, é um exemplo didático do que é misoginia.
E logo me vem à cabeça a famosa frase do ex-presidente Bolsonaro direcionada para a deputada Maria do Rosário, de que a petista “não merecia ser estuprada” por ser “muito feia”.
Quanta violência há nisso? Dá para nivelar essa frase com Lula dizer que escolheu uma mulher bonita? Não acho. E também não penso que o presidente Lula seja um odiador de mulheres. Acho que ele é machista, assim como a maioria dos brasileiros que eu conheço. Mas, como presidente da República, ele não deveria (e não pode) deixar esse tipo de colocação machista escapar.
“Polarização”
Após a fala de Lula, as redes e a mídia foram tomadas por um debate caloroso – como costuma acontecer em tempos de redes sociais. “Ah, mas um homem não pode chamar uma mulher de bonita?”. “Ah, a frase do Lula é uma tragédia”.
E já espero que, ao publicar essa coluna, eu receba comentários do tipo: “o Lula não é machista” ou “você está passando pano”.
Não é o caso. Acho que essa sequência de fatos lamentáveis (e não me refiro apenas à fala do presidente Lula) deveria servir pra gente tentar refletir com calma.
E se paramos e olhamos toda a situação, o que vemos? Que o Brasil continua sendo um país extremamente machista e que ele não poupa quase ninguém (nem mesmo o presidente da República, um progressista).
E, além disso, que existe uma misoginia assustadora e perigosa no Parlamento e na extrema direita brasileira.
Mulheres em posições de poder e que tem uma voz costumam ser alvo das duas coisas, do machismo e da misoginia. Nas redes sociais, praticamente todos os dias, Gleisi é chamada por seus desafetos de “a amante”.
Ela já sofreu ataques na rua e por aí vai. E é triste, mas agora, como ministra, ela provavelmente vai ser alvo de ainda mais machismo e mais ataques misóginos.
Isso tudo precisa mudar. Mas é preciso ficar claro que uma coisa é machismo (péssimo) e outra coisa é a misoginia criminosa, que faz com que o crescimento da violência política contra mulheres no Brasil seja alarmante. Precisamos estar atentas.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.