Poema de sete faces de Drummond: uma análise literária

O poema “Sete Faces”, de Carlos Drummond de Andrade, foi publicado em 1930 na obra “Alguma Poesia”. Com uma linguagem sensível e introspectiva, o poeta explora temas como a inadequação, a solidão e a busca por identidade.

Poema de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode,

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

A estrutura do poema é composta por sete estrofes. Mas, antes de começar a análise, você sabe o que é eu-lírico?

O eu lírico é a voz que “fala” no poema, o sujeito que expressa os sentimentos, ideias ou reflexões na obra poética. É diferente do autor, pois representa uma criação artística. Enquanto o autor é a pessoa real que escreve o texto, o eu lírico é uma figura fictícia, uma construção literária que pode ou não refletir aspectos do autor.

O eu-lírico é essencial para a poesia, pois dá vida ao texto e cria a ponte emocional entre o poema e o leitor. É por meio dele que o autor comunica ideias, sentimentos e reflexões de maneira artística.

10 célebres frases de Carlos Drummond de Andrade

Estrutura e temática do Poema de Sete Faces

O poema é composto por sete estrofes, cada uma como uma “face” que reflete um aspecto do eu lírico. Ele não segue um esquema fixo de rimas, característica do Modernismo, e possui uma linguagem coloquial e direta.

Os temas principais incluem:

  • Angústia existencial: O poema reflete um sujeito perplexo diante do mundo, buscando sentido e identidade.
  • Conflito social e cultural: Há menções a desigualdades e aspectos da modernidade, como a figura do homem burguês e a miséria urbana.
  • Autocrítica: O eu lírico se observa com um olhar irônico, cheio de contradições.
  • Religiosidade e ironia: Há uma tensão entre referências religiosas e o tom questionador.

1ª estrofe:
“Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.”

Aqui, o eu-lírico se identifica com o próprio autor ao usar seu nome, Carlos. O termo “gauche”, que em francês significa “esquerdo” ou “desajustado” implica uma vida vivida à margem das normas sociais e convencionais, reforçando a ideia de estranheza e inadequação. Desde o nascimento, há a predestinação de ser diferente, deslocado. A figura do “anjo torto” remete à ideia de um destino irônico e imperfeito.

2ª estrofe:
“As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.”

Essa estrofe reflete a alienação e a superficialidade das relações humanas. O desejo é apresentado como algo que distorce a beleza e a harmonia do mundo.

A personificação das casas indica uma observação crítica da sociedade, em que os desejos humanos são evidentes e intensos. A cor da tarde é afetada por esses desejos, sugerindo que a busca pelo amor e pela aceitação é uma fonte de sofrimento e solidão.

3ª estrofe:
“O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.”

Drummond aborda a questão da coletividade urbana, usando o bonde como símbolo. Há um contraste entre o olhar curioso e o coração reflexivo. A diversidade de “pernas” também sugere questões raciais e sociais.

O eu-lírico oscila entre a observação do mundo externo e suas reflexões internas. Revela uma inquietação sobre as relações humanas e o desejo. O contraste entre o olhar do coração — que questiona — e o olhar dos olhos — que não pergunta nada — sugere um estado de apatia ou resignação frente à realidade.

4ª estrofe:
“O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.”

Essa estrofe traz uma descrição enigmática, que muitos interpretam como uma possível autoironia de Drummond. O “homem atrás do bigode” é uma figura reservada e introspectiva, que revela a solidão do indivíduo moderno.

5ª estrofe:
“Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.”

Aqui, o tom religioso e confessional surge com uma carga de desamparo. É uma súplica que destaca a fragilidade humana frente à ausência de respostas metafísicas.

Esses versos refletem uma profunda crise existencial. O eu-lírico se sente abandonado em um mundo vasto e indiferente. A invocação a Deus expressa uma busca por sentido em meio à fragilidade humana.

6ª estrofe:
“Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.”

Essa estrofe é uma das mais conhecidas. O jogo de palavras reflete a busca por sentido em um mundo indiferente. A rima “Raimundo” é apresentada como um recurso simplório diante da complexidade do universo.

A repetição da expressão “Mundo mundo vasto mundo” enfatiza a imensidão do universo em contraste com a intimidade do coração humano.

Esse verso sugere que, apesar da vastidão externa e da solidão interna, existe um espaço emocional profundo que permite ao eu-lírico conectar-se com suas emoções e experiências.

7ª estrofe:
“Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.”

Veja também:

  • Dia do Poeta e Dia Nacional da Poesia
  • Os 20 maiores poemas de amor da Literatura Brasileira
  • Especial: Os 7 maiores poemas modernistas brasileiros

A conclusão é uma mistura de confissão e proibição. O tom é de vulnerabilidade, em que os sentimentos se misturam com as forças externas (a lua e o conhaque). A comoção é inevitável.

A linguagem do poema é marcada pela coloquialidade e por metáforas que traduzem as contradições do mundo moderno. O humor e a ironia são presentes, assim como a melancolia.

Drummond é um dos grandes nomes do Modernismo brasileiro. Em “Poema de Sete Faces”, ele traz a liberdade formal, o uso do cotidiano como matéria poética e o questionamento das convenções tradicionais.

“Poema de Sete Faces” é uma síntese da sensibilidade de Drummond. Conjuga elementos pessoais e universais para criar um retrato humano complexo, em que a identidade, a sociedade e a existência são exploradas com ironia e lirismo.

Drummond utiliza sua própria identidade para explorar sentimentos universais de inadequação, solidão e busca por pertencimento. Cada estrofe revela uma face diferente do eu-lírico, refletindo as contradições da vida moderna e a luta interna entre ser parte do mundo ou permanecer um observador distante.

The post Poema de sete faces de Drummond: uma análise literária appeared first on Novabrasil.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.