Serviço de moto por aplicativo na cidade de SP: entenda a briga jurídica entre prefeitura e 99


Ricardo Nunes é contra a ideia de motos circulando com passageiros na cidade. Empresa de tecnologia alega que gestão municipal ignora entendimento do Supremo Tribunal Federal. Ricardo Nunes notifica serviço da 99motos
ESTADÃO CONTEÚDO/FOTOARENA/ALOISIO MAURICIO
O lançamento do transporte por moto via aplicativo da empresa 99 na cidade de São Paulo na terça-feira (14) virou o centro de uma batalha jurídica sobre a legalidade do serviço na capital. O anúncio também acendeu o debate sobre mobilidade no município e segurança no trânsito.
O prefeito Ricardo Nunes (MDB) afirma que a atividade é ilegal na capital e determinou uma fiscalização rigorosa a fim de coibir a atuação de motociclistas por app. Em 2023, ele publicou um decreto municipal proibindo o serviço após a Uber tentar oferecê-lo.
A 99, por sua vez, argumenta que está respaldada pela Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), instituída por uma legislação federal, e entrou na Justiça para continuar oferecendo o serviço.
Abaixo, entenda o que dizem as legislações e a briga entre a prefeitura e a empresa.
📖 O que diz legislação federal
O serviço de transporte oferecido por aplicativos no Brasil é regulamentado por duas leis federais.
A primeira é a lei nº 12.009 de 2009, que regula o serviço de mototáxi e motofrete (transporte de cargas) e define os requisitos para o exercício da profissão, como o uso de capacete e colete identificador. A lei também estipula a obrigatoriedade de cadastro junto aos órgãos municipais de trânsito.
A segunda é a PNMU, instituída pela lei n° 12.587 de 2012. Ela foi modificada em 2018 (pela lei 13.640) para incluir um trecho que regulamenta especificamente os serviços de aplicativos de transporte. A lei, aprovada no governo Michel Temer, ficou popularmente conhecida como “Lei do Uber”.
O que diz a legislação municipal
A Prefeitura de São Paulo editou um decreto municipal em janeiro de 2023 que suspende na cidade o serviço de transporte de moto por aplicativo.
Com um texto bem sucinto, o decreto nº 62.144, de 6 de janeiro de 2023, suspendeu “temporariamente a utilização de motocicletas para a prestação do serviço de transporte individual remunerado de passageiros por meio de aplicativos”.
O texto não informa o prazo da suspensão, tampouco lista possíveis punições em caso de descumprimento ou sobre apreensão de motos.
O que dizem especialistas
Especialistas ouvidos pela reportagem avaliam que, embora haja uma legislação federal, ela estabelece apenas normais gerais para o setor, e a regulamentação deve ser competência do município.
Segundo o advogado Marcelo Marques, coordenador da Comissão de Direito de Trânsito da OAB-SP, a regulamentação detalhada e a fiscalização do serviço de mototáxi ficam sob a responsabilidade dos municípios, que podem definir aspectos específicos da atividade dentro do seu território.
O serviço precisa, sim, ser regularizado pelo município. A lei 12.009 deixa essa incumbência para o município até respeitando a peculiaridade de cada. O serviço [de transporte de passageiro por motos] não é ilegal desde que não tenha nenhuma regulamentação, nenhuma lei que o proíba. Aqui em São Paulo, temos uma lei que proíbe o serviço de mototáxi.
Na avaliação do especialista, a prefeitura tem razão em querer barrar o serviço neste momento. “Querendo ou não, a responsabilidade pela segurança viária e pelos passageiros e condutores é do município.”
Ele explica que há um limbo jurídico porque o Código de Trânsito Brasileiro disciplina apenas o motofrete e não o mototáxi.
“O artigo 139 do Código de Trânsito Brasileiro menciona somente motofrete. Mas a Lei 12.009 faz uma confusão: ela coloca os dois no mesmo pé de igualdade, tanto o motofrete quanto o mototáxi, porque o mototáxi, presume-se, segue mais ou menos a regra do táxi, que já é a competência municipal”, completou o advogado.
Em entrevista à TV Globo, o superintendente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) e engenheiro civil, Luiz Carlos Mantovani Nespoli, reforça que a competência por disciplinar o serviço de transporte remunerado é municipal.
A competência por introduzir numa cidade brasileira o serviço por mototáxi é do prefeito que vai determinar através da legislação municipal a forma como isso vai ser feito. Se ele fizer isso, terá que seguir as normas de trânsito a respeito do condutor e a respeito da motocicleta.
👉 Já a empresa 99 alega que a legislação estabelece que as prefeituras podem regulamentar e fiscalizar a atividade com exigências específicas, mas não podem proibi-la.
Veja a cronologia da briga entre Prefeitura de SP e a 99:
Moto transporta passageiro e o prefeito Ricardo Nunes
Montagem/g1/Reprodução/Redes Sociais
🏍️ Lançamento do serviço 99 Moto
99Motos foi lançado na capital paulista
Estadão Conteúdo/FotoArena/Aloisio Mauricio
A 99 lançou o serviço 99 Moto no Centro expandido na capital na terça-feira (14) e disse que a primeira viagem ocorreu pontualmente às 9h.
“O passageiro se deslocou do bairro Rio Pequeno, na região oeste, até o Osasco Plaza Shopping, na cidade vizinha à capital. A viagem teve percurso de 6,8 km feito em 12 minutos. O motociclista foi avaliado com nota 5, a maior que um usuário pode dar. O valor da corrida foi de R$ 10”, informou a empresa.
🚳 Proibição da prefeitura
A Prefeitura de São Paulo ficou sabendo sobre a disponibilidade do serviço por meio da imprensa e reiterou a existência de um decreto que suspendeu temporariamente o serviço na cidade.
Em um documento assinado às 10h33, o Comitê Municipal de Uso Viário (CMUV), órgão da prefeitura, fundamentou a medida ao citar o decreto municipal de 2023 que suspendeu temporariamente o transporte de moto por aplicativos.
Ainda pela manhã, Nunes, que estava em um evento público, vociferou contra a disponibilidade do serviço em São Paulo:
Esses desgraçados vêm aqui, ganham dinheiro e ainda querem levar a vida das pessoas […] Não usem isso, pelo amor de Deus. Vai ser uma carnificina.
Segundo o prefeito, a cidade não está preparada para o impacto que haverá na segurança no trânsito.
Em 2023, o grupo de trabalho constituído por Nunes apresentou estudos médicos e de segurança que argumentavam contra a liberação do serviço na capital em razão provável aumento de acidentes com motos e mortes, além do custo gerado ao serviço de saúde público.
Às 12h36, o comitê enviou o documento à Secretaria Municipal de Mobilidade e Trânsito e ao Departamento de Transportes Públicos.
⚖️ 99 vai à Justiça
Diante dessa medida da prefeitura, a 99 entrou com um mandado de segurança na 8ª Vara de Fazenda Pública pedindo que a determinação de Nunes para suspender o serviço fosse declarada nulo.
Mandado de segurança é um instrumento jurídico para proteger um direito que tenha sido violado por ato ilegal ou abusivo de autoridade pública.
A empresa argumenta que o CMUV contraria o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação ao tema, o que seria uma ato de coação por parte da prefeitura.
A decisão da Suprema Corte diz que a proibição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional por violar os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.
Além disso, o STF entende que os municípios, no exercício de sua competência para regulamentar e fiscalizar o transporte por aplicativos, “não podem contrariar os parâmetros fixados pelo legislador federal”.
A 99 argumenta que a Política Nacional de Mobilidade Urbana, que prevê o transporte de passageiros por aplicativo, abrange tanto automóveis quanto motocicletas, e que o serviço de moto já está disponível em “numerosas cidades do país” e tem sido reconhecida, “de forma reiterada, a jurisprudência de diversos tribunais brasileiros”.
A Justiça de São Paulo não havia se manifestado sobre o caso até a última atualização desta reportagem.
❓ Questionamentos de parlamentares
A questão chegou no Legislativo. A vereadora Renata Falzoni e a deputada federal Tabata Amaral, ambas do PSB, protocolaram em conjunto ofícios encaminhados ao prefeito e à 99.
Os documentos pedem esclarecimentos e sugerem o diálogo para discutir e, eventualmente, construir coletivamente uma regulação para o serviço de mototáxi na capital.
À 99, as parlamentares questionam o que será feito para fiscalizar o excesso de velocidade, evitar acidentes de trânsito e selecionar os motociclistas.
Para a prefeitura, elas pedem estudos sobre o transporte de passageiros por moto na capital e dados em relação aos acidentes e à efetividade da Faixa Azul para motociclistas, apontada pela gestão Nunes como medida eficaz.
▶️ Segurança
Na avaliação do superintendente da ANTP, o serviço de transporte de passageiros por moto deve ser proibido em São Paulo em razão da segurança, pois a moto é um dos meios de transporte mais inseguros “do ponto de vista de sua vulnerabilidade”.
Ele argumenta que a moto “depende essencialmente de um equilíbrio dinâmico” entre o piloto e o carona.
Quando você introduz um carona, você acrescenta um novo risco, porque o carona faz parte do processo dinâmico da circulação da bicicleta. […] Quando você libera isso para cidadão que nunca andou de moto, que não conhece a posição de um carona, você está introduzindo um risco do ponto de vista da segurança”, afirma Nespoli.
O Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e Moto-Taxistas do Estado de São Paulo (SindmotoSP) também publicou uma nota na terça (14) declarando ser contra a oferta do serviço na capital.
“A insistência da 99 com esse serviço de transportes de passageiros com moto só aumentará o número de vítimas, além de, no caso dos acidentes, deixar os motociclistas e passageiros na mão, tendo que arcar com os custos e muitas vezes, com a própria vida”.
A empresa contesta esse argumentos e afirma que os motociclistas receberão treinamento para oferecer o serviço.
💰 Preços acessíveis e mobilidade
A 99 promete ainda que o preço das corridas por moto será até 40% mais econômico em comparação às realizadas por carro, além de atender a população em locais mais periféricos e ser “uma alternativa mais segura do que caminhar pelas ruas”.
O tempo gasto no trânsito também pode ser reduzido em até 41%. Segundo a empresa, o serviço pode gerar 40% mais ganhos financeiros para motociclistas, criar empregos indiretos e fomentar a arrecadação de impostos para a cidade.
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